Por
Rev. João d'Eça.
ESTA É A SEGUNDA PARTE DESTE LONGO ARTIGO
O QUE ESTÁ POR TRAZ DA LEI DO ABORTO DO GOVERNO LULA?
continuando...
ENTREVISTA COM FRANCES KISSLING:
PRESIDENTE DAS CATÓLICAS PELO
DIREITO DE DECIDIR REVELA
A HISTÓRIA DA ORGANIZAÇÃO
http://www.smith.edu/libraries/libs/ssc/prh/transcripts/kissling-trans.html
Resenha da entrevista concedida em setembro de 2002, em Washington, D.C.
- Meu nome é Frances Kissling. Nasci na cidade de Nova York em 1943.
Minha mãe foi uma mulher que casou-se, divorciou-se, casou-se novamente e divorciou-se uma segunda vez.
Uma coisa que eu penso ser importante em termos do trabalho que hoje realizo é que minha mãe nunca deveria ter tido filhos. Minha mãe no fundo nunca quis nenhum de seus filhos. Ela teria sido muito mais feliz, teria tido uma vida muito melhor se ela não tivesse ficado grávida de mim e continuado sua gravidez.
Lembro-me que recentemente, um par de anos atrás, fiz uma apresentação no Boston College. A apresentação foi iniciativa do ministério da Igreja Cristã Evangélica no Colégio de Boston, pois Ministério Católico jamais teria me convidado. Uma estudante veio falar comigo depois da palestra e disse: "Você realmente deveria refletir o quanto deveria agradecer à sua mãe por tê-la deixado nascer e não ter feito um aborto". E eu lhe respondi: "Veja, quero contar algo para você. Minha mãe nunca deveria ter tido filhos. Num certo sentido ela teve uma vida miserável porque ela teve filhos. E eu estaria contente em não ter nascido para que minha mãe pudesse ter tido uma vida melhor. Para mim isso teria sido OK. A questão toda é que como feto você não é nada. Você não pode ter esta consciência reflexa de sua própria vida. É como adulto que você pode refletir sobre isto e tomar decisões. Neste sentido teria sido OK não ter vindo a este mundo. Teria sido tudo certo. E se teria sido bom para a minha mãe, teria sido OK".
- Quais foram seus momentos decisivos que fizeram com que você quisesse continuar como uma jovem católica?
- Eu penso que em grande parte isto se deveu aos relacionamentos extremamente positivos que eu tive com as freiras nas escolas. Eu era muito amiga de um grande número delas. Elas eram ótimas.
- O que aconteceu para você ter querido se tornar uma freira quando tinha dezesseis ou dezessete anos?
- Nós éramos ensinadas que havia três estados de vida. O estado mais alto era a vida religiosa, o segundo mais alto depois deste era o casamento, e o terceiro era a vida de solteiro. Foi uma questão de hierarquia. Você sabe, eu sempre quis ficar no topo da hierarquia. Eu nunca me interessei em permanecer na parte de baixo da hierarquia. E se no meu meio social e nos quadros que me eram apresentados o mais alto era ser uma freira, então eu queria o mais alto do que eu conhecia.
- Mas você estudou na Universidade de St. John durante um ano antes de ter entrado no convento. O que estudou ali?
- Literatura inglesa. A mesma coisa que tinha estudado na Escola Nova.
- OK. Fale-me sobre o seu tempo de convento.
- Foi no tempo anterior ao Concílio Vaticano II. Não foi uma época infeliz. Não foi nenhuma experiência desastrosa. Foi tudo absolutamente normal. Não vi nada da multidão de coisas de que hoje falam sobre esta era. Você, por exemplo, tomava banho sem roupa. Sim, é isso mesmo. Não tinha essa de que você tinha que ir para debaixo do chuveiro usando as roupas de baixo. Quase tudo no convento era razoavelmente normal, exceto o fato de que você tinha que usar roupas muito compridas e um véu sobre a cabeça.
- Há mais alguma coisa de seu tempo de convento sobre que teríamos que falar? Você não quer dizer o que as freiras falavam sobre sexo?
- As freiras não falavam nada sobre sexo. Nada mesmo. Nós nunca falávamos sobre isso. Nem mesmo nas aulas sobre saúde. Aliás, acho que nem tínhamos aulas sobre saúde. Nunca vi diagramas mostrando úteros nem nada destas coisas. Estas coisas não existiam. O que mais parecia com isso eram aulas de economia doméstica. Mas tenho uma memória zero de uma única discussão real sobre sexualidade. Não havia nenhuma expectativa de que fossemos sexuais. Não havia razão para falar de sexo. Você sabia o que era adultério. Você sabia o que era luxúria. Você sabia que todos esperavam que ninguém tivesse sexo antes do casamento. E não havia realmente mais nada, nada, nada para se falar sobre sexo. Não havia pílulas anticoncepcionais. Acho que quando estava terminando o colegial eu ainda nem sabia o que era um aborto.
- OK. Como foi então que você decidiu abandonar o convento?
- Sai porque eu não acreditava. Lembro-me que tive algumas conversas com outras irmãs e outras postulantes sobre controle de natalidade, divórcio e segundo casamento. E eu não acreditava no que a Igreja ensinava sobre estas coisas. A idéia de ser uma representante da Igreja institucional ao mesmo tempo em que discordava destas posições não fazia sentido para mim. Eu não concordava com os ensinamentos da Igreja. Na verdade, eu nunca tinha concordado com os ensinamentos da Igreja, mas eu não pensei que isso fosse uma coisa importante até que eu me vi em uma posição onde os ensinamentos da Igreja iriam ser a minha vida. E assim, quando eu deixei o convento eu parei de ir à Igreja. Você pode dizer que a partir deste ponto eu não era mais uma católica ativa. Mas eu mesma particularmente não me considerava mais ser uma católica.
- Você se tornou sem religião a partir daquele momento?
- Sim, exatamente. Mas novamente, pensando de uma certa maneira, eu nunca havia sido uma pessoa piedosa. O meu catolicismo nunca se baseou em ir à missa, rezar o rosário, etc. Não era isso para mim o que significava ser católica. O catolicismo para mim sempre foi mais filosofia do que teologia. Assim, eu deixei a Igreja e fiquei sem religião. E não tive nenhuma raiva. Quero dizer, eu não me senti bem, mas não acho que a Igreja fêz nunca nada de terrível para mim. Na verdade, eu sempre senti e ainda sinto que a Igreja desempenhou um papel muito importante e positivo na pessoa que hoje eu sou. Eu sei que eu tive uma boa educação católica. Meus professores me trataram sempre com carinho. Minha educação foi individualizada. Meus talentos sempre foram reconhecidos e estimulados. Tudo isto foi uma base espiritual e intelectual razoavelmente rica. Mas o problema é que eles estavam errados. Isto é o tipo de coisa do modo como eu a sinto. Sempre repito em minhas palestras que o maravilhoso da Igreja Católica, e também da maioria das religiões, é que elas colocam as grandes questões. Mas dão respostas intoleráveis. Esta é a realidade. Mas eu sinto alegria ao perceber que elas colocam as questões que ninguém mais irá levantar.
Quando saí do convento, não pensei mais sobre o que gostaria de ser. Eu ia ser uma freira. E agora eu não ia ser uma freira. Eu sempre soube que nunca quis casar-me. E eu tenho certeza que isto teve muito a ver com os casamentos de minha mãe. Eu também nunca quis ter filhos. Nisto eu sou como minha mãe, exceto pelo fato de que eu consegui o que ela deveria ter tido. Conversei sobre isso com a minha mãe antes dela morrer. Eu perguntei se ela lembrava de algum período de minha vida em que eu pudesse mostrar algum interesse no casamento, se ela se lembrava, quando eu era criança, nas minhas brincadeiras, se fazia parte das minhas brincadeiras ter um marido ou ter filhos? E ela me respondeu: "Não, isso nunca existiu".
- Quando você ouviu falar pela primeira vez dos movimentos das mulheres?
- Eu nunca fiz parte de nenhum grupo feminista. Eu nunca participei de um grupo de conscientização de qualquer coisa. Eu sabia que havia um movimento feminista. Mas eu sempre me senti poderosa por mim mesma. Quero dizer, um aspecto de minha vida, não gosto muito de usar a palavra poderosa, mas eu sempre senti o poder. Eu sempre senti que era eu que estava de posse de minha vida. Eu estava no poder. Eu nunca fui o instrumento de ninguém. Tive namorados e homens com quem me envolvi. Mas não era nada terrivelmente importante. A maioria de meus primeiros relacionamentos eu não diria que foram sérios ou importantes para mim. Foram mais relacionamentos sexuais do que relações de comprometimento. Por isso nunca precisei me sentir necessitada de libertação. Isso nunca foi um aspecto de minha identidade. Em um certo sentido, eu me tornei parte do movimento pelo direito ao aborto antes que tivesse me tornado parte do movimento pelos direitos da mulher.
E isso foi, novamente, uma coisa acidental. Eu estava morando com um homem. Tínhamos alugado uma casa de verão. Eram os anos de 1969 e 1970. As pessoas de quem alugamos a casa de verão, uma delas era médico. Ele conhecia alguns médicos do Hospital Albert Eisntein que estavam abrindo uma clínica de aborto. O aborto se tornou legal no estado de Nova York em julho de 1970. [O aborto não era ainda legal no restante dos Estados Unidos. Graças ao então governador de Nova York, Nelson Rockefeller, o aborto tinha sido legalizado durante os dois primeiros trimestres da gravidez no nosso estado. Não era necessário justificar razões médicas, psicológicas ou econômicas para consegui-lo, bastava o pedido da mulher. A paciente, além disso, não era obrigada a residir em Nova York para conseguir o aborto]. Os médicos do Albert Einstein estavam procurando alguém que gerenciasse a clínica e pensaram que eu seria boa nisto. O meu senhorio me apresentou aos médicos e eles me contrataram para dirigir a clínica.
Isto foi em 1970, no fim de 1970, na cidade de Nova York, na primeira onda de clínicas de aborto que foram abertas naquela época. Tudo o que estas clínicas faziam era aborto. Quem quer que ali estivesse, só se fazia aborto. Eles ensinavam planejamento familiar depois do aborto, mas ninguém se dirigia àquelas clínicas como um paciente de planejamento familiar. Minha clínica era chamada de Pelham Medical Group em Westchester, New York. Mas a maioria destas clínicas foram fundadas por empresas com fins lucrativos gerenciadas por médicos homens. Foi assim que tudo começou. A Planned Parenthood, [filial americana da IPPF, hoje a maior rede de clínicas de aborto dos Estados Unidos], não quis abrir nenhuma clínica em Nova York. A Plannned Parenthood nunca estiveram na vanguarda dos serviços de aborto nos Estados Unidos, nem na Califórnia, nem em Nova York, no Colorado, no Havaí. Eles só começaram tardiamente. Mesmo depois que o aborto se tornou legal em todos os Estados Unidos em 1973, foi muito difícil conseguir que a Planned Parenthood abrisse uma única clínica de aborto. Eles não queriam ser estigmatizados. Hoje a maioria das clínicas de aborto não tem o volume impressionante de trabalho que tínhamos naquela época. Quando o aborto se tornou legal em meados de 1970 em Nova York, a cidade virou um zoológico. Nova York era um zoológico. Você podia ver mais de uma centena de mulheres esperando para abortar em uma clínica pequena em um dia de sábado. Nenhum médico chegou a trabalhar em período integral, mas havia uma multidão de médicos. Um médico podia trabalhar nisto dois dias por semana, dezesseis horas. Mas as equipes eram full time. Durante os primeiros três anos as mulheres vinham para Nova York de todo o país. As mulheres desciam no aeroporto de La Guardia. Havia um perfeito clima de Oeste Selvagem nos novos procedimentos que haviam sido legalizados. As mulheres chegavam de estados onde o aborto era ilegal. No que lhes dizia respeito, tratava-se de uma coisa ilegal. A mentalidade era da clandestinidade mesmo se a coisa já era legal. Os motoristas de táxi raptavam a pacientes que haviam marcado hora com você e as levavam para outras clínicas onde os donos pagavam para os motoristas por cada cliente que eles traziam. As clínicas foram obrigadas a contratar furgões e limusines para pegarem elas mesmas os pacientes no aeroporto para que as pacientes não fossem seqüestradas. Você também via outras mulheres, mulheres jovens, junto com os seus namorados, que chegavam ao estacionamento às seis da manhã depois de terem dirigido do Kentucky, sem terem dormido à noite, assustadas, não sabendo o que iria acontecer, esperando que a clínica abrisse. Para elas tinha sido a Noite dos Mortos Vivos. Pela primeira vez elas podiam ir a um lugar e conseguir um aborto que fosse legal e estivesse tudo correto. Mas por outro lado, tudo tinha todas as características de uma atividade ilegal. Você sabia que era legal, mas ainda era, em termos de mentalidade, uma coisa ilegal. Porque naquele único lugar era legal, mas em toda a volta, na cabeça de todo o mundo, o mundo, tudo, a questão era resumida em procurar um aborteiro ilegal. Você sentia este clima.
- Quanto tempo você pensou sobre a questão do aborto antes de ser contratada para a clínica?
- Não muito. Eu nunca fiquei grávida. Nunca tive uma experiência pessoal sobre o aborto. Em toda a minha vida só fiz sexo inseguro duas vezes em muitos anos em que eu poderia ter ficado grávida, desde a minha primeira relação sexual até que me esterilizei aos trinta e três anos. Não tive um só momento de indecisão quando me pediram que administrasse a clínica. O que eu pensei foi: "Oh, eu posso fazer isso". Para mim esta foi a primeira experiência de um emprego que tivesse algum significado. Eu estava em uma posição na qual eu poderia fazer algo de bom e algo que percebia que era política, cultural e socialmente importante. E eu seria paga para isso. E eu também era o chefe. Tudo isso soava grandioso, e eu não podia pensar em nada melhor.
Três anos mais tarde, quando foi aprovada a decisão Roe x Wade, que legalizou o aborto em todos os Estados Unidos, eu estava trabalhando na clínica . Nesta altura, toda a minha família já estava envolvida com a clínica. Meu irmão era o motorista do furgão que recebia as mulheres. Minha mãe era a chefe das telefonistas. Minha irmã mais jovens era conselheira telefônica.
- Que impacto a decisão Roe v. Wade teve no seu trabalho?
- Eu trabalhei na clínica Pelham por aproximadamente dois anos quando me tornei a diretora executiva de um lugar chamado Eastern Women's Center, que era uma outra clínica de aborto em Manhattan. E eu estava trabalhando no Eastern Women's Center quando o aborto se tornou legal em todos os Estados Unidos. Eu deixei esta outra clínica no final de 1973, ou no início de 1974. Assim, não pude sentir muito o impacto.
- OK, para onde você foi no final de 1973?
- Saí de férias por um ano. Fui para o Sudeste Asiático com o meu companheiro. Moramos em Panang e viajamos através do Sudeste Asiático por um ano. Foi uma grande experiência. Depois voltamos e quando chegamos fomos contactados pelo IPAS, que naquela época era conhecido como International Pregnancy Advisory Services (Serviço Internacional de Aconselhamento da Gravidez). Passei a trabalhar para o IPAS.
O problema era que quando o aborto se tornou legal em 1973, a família Scaife de Pittsburgh, no caso, a Sra. Cordelia Scaife May, doou um milhão de dólares à Planned Parenthood para que ela começasse a abrir clínicas de aborto em todo o país. Foi esta a maneira que uma parte da Planned Parenthood encontrou para quebrar a resistência da outra parte que não queria entrar no negócio de abrir clínicas de abortos. E, no ano seguinte, mais um milhão de dólares foi doado ao IPAS para que o IPAS começasse a fazer o mesmo serviço principalmente nos países em vias de desenvolvimento. Don Collins fazia parte do esquema. Ele era o responsável por este programa na Fundação Scaife naquela época. Estas pessoas nos contrataram. Eles eram pioneiros independentes, como Lone Rangers, viajando em todo o mundo tentando convencer as pessoas a receberem o dinheiro deles para abrirem clínicas ilegais de abortos. E alguém me recomendou para que me contratassem para trabalhar com eles. Fui contratada, primeiro como consultora, para trabalhar junto ao Partido Radical e ao movimento feminista na Itália.
Naquela época o aborto ainda não era legal na Itália e as mulheres estavam indo para a Iugoslávia para conseguirem um aborto. Havia também uma série de clínicas clandestinas, ilegais, de aborto, que eram administradas pelo movimento feminista e, de uma certa forma, por extensão, junto com o Partido Radical. O Partido Radical foi o partido responsável pela reforma do divórcio e pelo referendo que legalizou o divórcio. E eles foram também o partido que estava patrocinando o referendo de 1975 sobre o aborto legal na Itália. Os homens que me contrataram acharam que, por eu ser uma feminista e por ser uma radical, talvez eu poderia convencer os italianos a aceitarem o nosso dinheiro. Esta foi a primeira vez que eu me vi frente a frente com o lado do problema populacional dentro da questão do aborto. Eu não sabia nada sobre as pessoas interessadas no controle populacional e os interesses internacionais escondidos atrás da questão do controle populacional e nada sobre tudo isso. Eu só conhecia o direito ao aborto.
No fim o Partido Radical decidiu que eles não iriam ficar com o dinheiro americano, porque era uma coisa potencialmente muito problemática. Eles achavam que eles "sabiam" que nós éramos todos da CIA. E mesmo que nós não fossemos, como nos disseram, eles seriam acusados de qualquer maneira de terem recebido dinheiro da CIA, e assim era melhor que eles não ficassem com o dinheiro.
O IPAS em seguida me pediu para ir à Tunísia e ver o que estava acontecendo por ali em termos de aborto. Eles me mandaram também para a Nigéria, e ali passei os que foram os três piores dias de toda a minha vida.
O trabalho seguinte que eu fiz para o IPAS foi abrir uma clínica de abortos na Áustria. Eu não sei se as pessoas que estão hoje no IPAS conhecem mais esta história de sua própria organização, porque todos os que estavam ali nesta época já saíram, morreram ou se aposentaram. O aborto foi legalizado na Áustria em 1976. O IPAS queria abrir uma clínica na Áustria de que ela já era proprietária e que poderia usar como fonte de renda para o trabalho nos países subdesenvolvidos. Eles fizeram primeiro uma parceria com a Maria Stopes da Inglaterra, que já estava abrindo clínicas em todo o mundo, e isto sob a perspectiva do problema do controle populacional. Assim a Marie Stopes da Inglaterra e a IPAS norte americana tentaram abrir juntos uma clínica na Áustria para que eles tivessem uma fonte de renda. Mas o funcionário que administrava a Marie Stopes não teve nenhum sucesso. Foi então que o IPAS me propôs: "Por que você não tenta? Vá e veja se você pode fazê-lo". Eu disse que aceitava e levei comigo um dos dois médicos que tinham sido donos da Clínica Pelham, que também era um excelente homem de negócios. Lá fomos nós juntos para a Áustria para ver se achávamos um médico com quem poderíamos abrir uma clínica de abortos. Lá chegando, encontramos o Dr. [Alfred] Rockenschaub. Era um social democrata, e o diretor da Semmelweis-Clinic, que era um grande, muito grade e prestigioso hospital austríaco. Ele nos explicou que não se faziam abortos na Áustria. Já era tudo legal, mas não havia nenhum serviço disponível. Lembro-me bem da conversa que tive com ele. Nós falamos: "Ninguém está fazendo abortos na Áustria. O que está acontecendo aqui?" Ele respondeu: "Bem, agora que tudo já é legal, ninguém quer encalhar o barco na rocha". Foi assim que começamos a caçar os médicos nas salas de emergência dos pronto socorros e falando com os médicos nas salas de emergência. A teoria do Dr. Hachamovich, que era o médico que tinha vindo comigo da América, era a de que tínhamos que encontrar um médico afundado em problemas. Tínhamos que encontrar alguém que estivesse se divorciando, que precisasse de dinheiro, alguém que estivesse disposto a enfrentar riscos. E assim nós continuamos perguntando e perguntando até que finalmente encontramos alguém a quem pudemos contratar. Em seguida contratamos uma mulher nativa para administrar a clínica. E abrimos finalmente a primeira clínica de aborto legal na Áustria. Nós a abrimos, a administramos durante algum tempo, a mantivemos andando e então nos mudamos, deixando para o IPAS. Eu trabalhei com o IPAS durante um ano e meio fazendo este tipo de coisa. Durante este tempo eu fui também para o México onde ajudei o IPAS a abrir uma clínica, desta vez ilegal, no México. Isto foi entre 1975 e 1976.
- Desculpe parecer ingênua, mas como é que se abre uma clínica ilegal?
- Primeiro você tem que encontrar um médico que queira fazer os abortos. Isto é a primeira coisa, achar um médico. O caso é que o IPAS já tinha este médico esperando no México. Em seguida você aluga um lugar e começa a fazer os abortos.
- Mas o que é que impede o governo de fechar o estabelecimento?
- O que impediu o governo de fechar os provedores de aborto ilegal nos Estados Unidos antes de 1970? Suborno e falta de vontade política. Nunca houve uma vontade política real de parar os abortos clandestinos. Além disso a Igreja Católica não se preocupa que se façam abortos. O que eles não querem é que seja legal. Isto faz parte do pacote.
Enquanto eu estava trabalhando para o IPAS como consultora fui a uma Conferencia em 1976 na Universidade do Tennessee em Knoxville. A Conferência era sobre o aborto. Era uma pequena conferência, talvez houvesse ali uma cem pessoas, cento e vinte pessoas. Um dos propósitos desta conferência era a de fundar uma associação de provedores de aborto. Em um certo sentido aquela conferência foi berço da National Association of Abortion Facilities [Associação Nacional dos Estabelecimentos de Aborto], NAAF. O impulso veio com muita força por parte dos provedores de aborto com fins lucrativos que nos últimos anos haviam entendido de forma crescente que estavam sendo considerados como cidadãos de segunda categoria, em um clima onde a Preterm e a Planned Parethood eram considerados os bons meninos. Agora que finalmente estas organizações haviam começado também elas a fazer abortos, elas estariam fazendo isso por motivos altruístas e não em busca de lucro. Mas haveria também esta "escória médica" que haviam aberto clínicas para fazer aborto por dinheiro. E a Preterm e a Planned Parethood supostamente não queriam ter nada a ver com esta gente. Mas esta gente achava que eram homens dignos a fazer coisas boas. E agora eles queriam sua própria associação profissional. Assim, eles estavam fundando a Associação Nacional dos Estabelecimentos de Aborto (NAAF). E eu estava ali e esta gente gostava de mim. E eles me disseram: "Frances, você não gostaria de participar do Comitê Administrativo?". E eu respondi: "Com certeza, eu vou participar do Comitê Administrativo". Foi deste modo que comecei. Rapidamente começou uma fortíssima pressão por parte da Planned Parenthood e dos outros provedores sem fins lucrativos querendo impor a posição de que a NAAF era uma péssima idéia: "Esta gente tem a política errada e tudo o mais que há de errado, e nós não podemos deixar isto acontecer". Eu trabalhei nesta época para fazer com que pudéssemos descobrir uma maneira de que todos pudéssemos sentar em torno da mesma mesa, através de uma representação proporcional. As clínicas feministas teriam duas cadeiras e as grandes instituições sem fins lucrativos teriam muitas cadeiras e também as grandes instituições lucrativas, sem esquecer dos consultórios médicos.
Mas isto não funcionou. Em um certo sentido os provedores com fim lucrativo estavam com a razão, haviam sido eles que tinham tido a idéia. Eles não eram obrigados a dar a estas pessoas o que elas queriam. Fora com elas.
Assim a estratégia não funcionou e eu saí da NAAF. E todo mundo que não era parte da NAAF formou o que se veio a chamar-se de National Abortion Council [Conselho Nacional do Aborto], NAC. E eu me tornei a presidente do Conselho Nacional do Aborto.
O objetivo explícito do Conselho Nacional do Aborto era trazer de joelhos a Associação Nacional dos Estabelecimentos de Aborto. E foi o que de fato veio a acontecer depois de menos de seis meses de competição entre as duas organizações. A NAAF não cresceu mais, e o Conselho Nacional do Aborto teve acesso a muito mais dinheiro porque nós éramos os bons meninos que conhecíamos os grandes financiadores. John D. Rockefeller III financiou a NAC. Finalmente um comitê, um comitê de negociação, foi estabelecido. As duas organizações se fundiram na Federação Nacional do Aborto (National Abortion Federation) e eu fui novamente nomeada como a primeira diretora executiva.
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