quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

COMO SE DEUS NÃO EXISTISSE.

Ricardo Gondim No século passado, Karl Marx e Sigmund Freud representavam duas grandes ameaças contra a religião. Marx afirmava que a igreja serve a interesses ideológicos de controle político e de subjugação econômica. Freud, por sua vez, percebia os mecanismos infantilizantes da religião quando sacerdotes projetam em Deus nosso desejo por um pai perfeito. Para ele, a prática religiosa condena homens e mulheres a viverem como eternas crianças, sempre precisando de intervenções sobrenaturais para enfrentar as agruras da vida. É preciso dar a mão à palmatória. Os dois leram as instituições religiosas dos seus dias corretamente, principalmente a cristandade. Desde Constantino, o apelo do poder mostrou-se arrasador e irresistível nas igrejas. Infelizmente, os ensinos do Nazareno foram usados para autenticar o expansionismo imperialista e colonialista dos grandes impérios que se auto-proclamaram cristãos. Padres, pastores e bispos se vestiram como a grande prostituta do Apocalipse e se entregaram por qualquer preço. Monarcas beijaram anéis episcopais enquanto obrigavam seus donos a lamberem suas botas. Assim, os mercadejadores do templo precisaram distribuir ópio religioso para poderem fazer vista grossa e abençoar inúmeras carnificinas – dos Tsares russos ao Batista cubano; das aventuras ensandecidas de Isabel espanhola às dos Bush, pai e filho. A adoração do “Deus provedor” ocidental deu razão a Freud, que denunciava os recintos religiosos como incubadoras de oligofrênicos. O proselitismo missionário foi feito, em grande parte, precisando de uma espiritualidade funcional. Na tentativa de mostrar a superioridade de Jeová sobre as demais divindades, criou-se um fascínio por milagres. “Nosso Deus funciona”, clamaram os evangelistas por séculos. Desse modo, o sobrenatural passou a ser compreendido como uma intervenção legitimadora daquele que é o verdadeiro “dono do pedaço”. Assim, os crentes viciados em milagres se condenaram à freudiana dependência infantil. Em minha opinião, só seria possível resgatar a mensagem de Jesus Cristo, caso a religião abrisse mão de suas hierarquias institucionais, demitisse elites, democratizasse o acesso a Deus, e esvaziasse os rituais da função de serem técnicas para se obter bênçãos. É importante que repensemos a fé, seguindo o exemplo de Jesus que viveu sem precisar de milagres e morreu sem apelar para os anjos. Iguais a ele, precisamos viver sem os cabrestos da religião e sem as intervenções de Deus. Concordo com John Hick em “Evil and the God of Love” (New York, Harper & Row; London, Mcmillan, 1966, p. 317) “Ao criar pessoas finitas para amar e serem amadas por ele, Deus precisa dotá-las com certa autonomia relativa quanto a si mesmo”. Mas como pode uma criatura finita, dependente do Criador infinito quanto à sua própria existência e a cada poder e qualidade do seu ser, possuir qualquer autonomia significativa em relação a esse Criador? A única maneira que podemos imaginar é aquela sugerida pela nossa situação efetiva. Deus precisa colocar o homem à distância de si mesmo, de onde ele então pode vir voluntariamente a Deus. Mas como algo pode ser colocado à distância de alguém que é infinito e onipresente? É óbvio que a distância espacial não significa nada nesse caso. O tipo de distância entre Deus e o homem que criaria certo espaço para certo grau de autonomia humana é a distância epistêmica. Em outras palavras, a realidade e a presença de Deus não devem se impor ao homem de forma coercitiva como o ambiente natural se impõe à atenção deles. O mundo deve ser para os homens, pelo menos até certo ponto, etsi deus non daretur, “como se Deus não existisse”. Ele precisa ser cognoscível, mas apenas por um modo de conhecimento que implique uma resposta livre da parte do homem, consistindo essa resposta em uma atividade interpretativa não-compelida através da qual experimentamos o mundo como realidade que media a presença divina”. Uma nova igreja precisa se desvincular de seu fascínio pelo poder, qualquer um: político, econômico, militar ou espiritual. Repito, urge que homens e mulheres construam sua humanidade, sendo sal da terra e luz do mundo, sem necessitar de repetidos socorros celestiais. [Ricardo Gondim]

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