sexta-feira, 30 de outubro de 2015

SEMANA DA REFORMA – ERASMO DE ROTERDÃ E A TRADUÇÃO DO NOVO TESTAMENTO





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Rev. João d’Eça







Introdução



         À partir do ano que vem, 2016, comemoraremos o 5º centenário da publicação da tradução do Novo Testamento feito por Erasmo de Roterdã.



Seu nome de batismo era Erasmo Desidério, mas ficou conhecido no mundo todo como Erasmo de Roterdã, por ter nascido na cidade holandesa de Roterdã. Ele veio a ser o maior humanista do seu tempo e talvez de todos os tempos.



Erasmo dedicou a sua vida inicial à carreira eclesiástica e fez votos monásticos, mas que depois os renunciou, conservando-se porém na igreja de Roma, onde exerceu cargos de confiança, chegando mesmo a ser agraciado pelo papa Paulo III com o chapéu cardinalício, o qual recusou prontamente.



Primeiros anos e estudos



         Erasmo iniciou os seus estudos em Paris e em Bolonha (1506) foi nomeado Doutor em Teologia. Manteve amizades e companheirismo com os mais poderosos homens de seu tempo: Na Inglaterra cultivou a amizade de John Colet e Thomas More, autor de Utopia. Foi favorecido por reis como Henrique VIII e Carlos V e ganhou a simpatia do papa Leão X, Paulo III e outros. Erasmo mantinha correspondências com reis e príncipes, com sábios e altos dignatários da igreja romana. Foi professor nas universidades de Oxford e Cambridge. Publicou e editou muitas obras.



Erasmo e a Reforma



         Erasmo de Roterdã contribuiu para a Reforma e muito lutou por ela. Suas sátiras contra os frades e contra os abusos eclesiásticos, e o seu reconhecimento das Escrituras Sagradas como padrão da doutrina e da fé, muito o recomendaram. Erasmo não ficou muito impressionado com Lutero, não aceitou a ideia de pecado e via o cristianismo como um sistema de moral, nada mais que isso. Faltava para Erasmo a coragem e o ardor de Martinho Lutero, e, por esta razão, ele foi se afastando cada vez mais do movimento Reformado, mesmo tendo se empenhado por ele no início.



A melhor contribuição de Erasmo para o movimento da Reforma, foi sem sombra de dúvida, a sua tradução do Novo Testamento. Ele dedicou-se com muito empenho ao estudo do grego em Oxford, em 1496 e depois tornou-se professor de grego em Cambridge. Quando estava em Paris, dedicou-se igualmente aos estudos, dando a maior parte de seu tempo.



O seu trabalho de composição



         Erasmo de Roterdã descobriu o manuscrito Annotationes ao Novo Testamento, escrito por Lorenzo Valla[1] uma comparação da Vulgata Latina com o texto original grego. Lutero ficou interessado pela obra e aconselhado por Christopher Fisher, resolveu publicá-la. Em 1506 voltou novamente a Inglaterra e por insistência de John Colet começou a fazer a tradução latina do original grego do Novo Testamento. Não sabemos ao certo quando foi que ele começou a fazer a edição grega, talvez posteriormente, quando esteve de novo na Inglaterra.



Erasmo preparava a sua obra no mesmo tempo em que o cardeal Ximenes preparava a sua Bíblia triglota, conhecida como Complutensis. Essa obra continha o texto grego da LXX ao lado do texto latino da Vulgata, e foi publicado em 1514, porém a obra completa só foi publicada em 1522. Por insistência do editor de Erasmo, Froben, da Basiléia que queria se antecipar à publicação de Ximenes, Erasmo publicou a sua obra em 1516, há exatamente 499 anos.



O trabalho de Erasmo foi primoroso e elogiado pelas maiores mentes de sua época. Ele usou quatro manuscritos da ordem dos minúsculos ou cursivos. Ao lado do texto grego publicou em colunas paralelas a sua tradução latina, na qual se afastou um tanto da Vulgata. A obra continha uma dedicatória a Leão X, o papa reinante. A obra continha cerca de 1000 páginas, incluindo anotações. O Trabalho foi elogiado por uns e criticado por outros. Houveram outras edições em 1519, a terceira edição em 1522, a quarta em 1527 e a quinta em 1535. De todas estas edições a mais notável foi a quarta. Todas as edições foram publicadas por Froben, na Basiléia.



Lutero usou a obra de Erasmo em sua segunda edição para fazer a sua tradução da Bíblia para o Alemão. A quarta que o autor corrigiu pela Complutensis, cujo texto era superior quanto ao valor crítico, veio mais tarde a servir de base ao famoso Textus Receptus. Depos disso houve as edições de Stephens (Étienne), famosos impressor francês, cuja 3ª edição de Paris (1550) recebeu o nome de Editio Regia.



Muitas outras edições surgiram naquele período, dentre elas as de Theodor Beza e as de Elzevirius, das quais surgiram o Textus Receptus, que se baseia na edição de Erasmo. O Textus Receptus rapidamente tornou-se popular e muitos a consideravam como texto autentico.



Conclusão



A Reforma, portanto, precisou do trabalho de Lutero e do impressor Froben, pelo magnífico trabalho que realizaram na época em que viveram. Foram usados por Deus para a realização de uma obra de enorme valor para o nascimento do movimento de Reforma da Igreja de Cristo na terra.



[1] Lorenzo Valla (14071 de agosto de 1457) foi um escritor, humanista, retórico e educador italiano. Célebre por sua aplicação dos novos padrões humanistas de crítica a documentos usados pelo Papado em apoio de seu poder temporal. Em 1440 publicou o seu panfleto contra a Doação de Constantino, que provou efetivamente que o famoso documento, pelo qual a autoridade imperial romana teria sido transmitida ao Papado, era espúrio. Valla foi também um filósofo de prestígio, e preocupado, com sua maestria lingüística, em que não se perpetuassem antigos erros decorrentes de traduções defeituosas de Aristóteles e da Bíblia.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

SEMANA DA REFORMA - AS INDULGÊNCIAS DO PAPA LEÃO X





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Rev. João d’Eça, MD



Introdução

         O papa Leão X proclamou a venda das indulgências[1] em toda a Europa e escalou um monge dominicano de nome João Tetzel para vende-las na Alemanha e arrecadar o maior número possível de dinheiro para Roma, cujo intuito era: 1) Pagar o empréstimo feito junto a banqueiros, e 2) arrecadar para a construção da basílica de São Pedro. As indulgências foram arrendadas por Alberto, arcebispo de Maiz, e Lutero se levantou contra esse comercio nefasto, dando assim início à Reforma protestante.

O papa Leão X dizia que as indulgências constituíam uma grande graça. O objetivo dessa venda era alcançar as grandes massas das populações por toda Europa. O clero apresentava ao público, mas também eram apresentadas por aqueles que queriam ganhar simpatia do alto clero do romanismo.

Muitos príncipes da Alemanha não viam com bons olhos o trabalho de João Tetzel e reclamavam da exploração por parte do papa das suas populações já muito empobrecidas. Nos seus territórios já estavam se esgotando as moedas que iam para enriquecer a coorte papal. Muitos homens de bem e muitos padres não viam com bons olhos a venda dessas indulgências, pois além de empobrecer o povo, traziam consigo muitos outros males para a sociedade.



Indulgências do papa Júlio

Em 1501 o papa Júlio promulgou uma indulgência com o propósito de auxiliar no custeio de uma guerra contra os turcos, em suposta defesa do cristianismo. O eleitor Frederico não permitiu que o dinheiro levantado nos seus domínios saísse do país, porque pretendia guardar essas somas até que a guerra fosse declarada. Começou ai a oposição de Frederico aos desmandos do papado.


Esse dinheiro que Frederico não permitiu que saísse dos seus domínios, foi empregado na construção da Universidade de Wittemberg, onde o jovem Lutero estudou, afixou na porta da catedral as 95 teses e onde ele foi professor.

Primeiros protestos contra as indulgências

João Wessel também protestou contra as indulgências, mas o seu protesto serviu apenas para que ele fosse morto na prisão em um claustro dominicano.

Esses primeiros protestos por mais veementes que fossem não atingiram contudo, a alma do negócio; a consciência popular, não foi despertada, o povo em sua maioria, ignorante, com medo e submisso ao papa, recebia as indulgências com o propósito declarado por Leão X.

Com o montante aumentando sempre, o papa dizia agora que os recursos seriam para construir a “Casa de São Pedro”, e ainda, pretendia levantar um túmulo sobre os ossos do grande apóstolo, que alegavam estar em Roma.

Ignorância espiritual

As pessoas mesmo não sabendo que fim levava o dinheiro arrecadado, não se inquietavam por ter de tirar o dinheiro de suas algibeiras e entregar ao representante do papa que viajava por toda a Alemanha e era recebido com festa. Digno de destaque é o testemunho de uma testemunha ocular, Myconius[2], que ainda menino, com treze anos de idade, conta o que testemunhou:


Quando o vendedor de indulgência aproximava-se de qualquer cidade, na sua frente, um pano de veludo e ouro, era carregada a bula papal que a anunciava. Todos os padres e monges, o concílio, mestres de escola com os estudantes, homens, mulheres, com bandeiras, velas e cânticos, em grande procissão, saiam ao seu encontro. A multidão acompanhava-o À principal igreja; todos os sinos retiniam, todos os Órgãos soavam. No meio da igreja erguiam uma grande cruz vermelha e desfraldava-se a bandeira papal. O povo parecia estar recebendo a Deus em pessoa.

Desse entusiasmo pelas indulgências, Alberto de Brandenburgo, outrora arcebispo de Magdenburgo, e nesse tempo arcebispo de Maiz, pensava em obter alguma vantagem. Ele ainda muito jovem, era afeito à ostentação e considerado protetor das ciências, era interessado no humanismo e apreciava as artes, principalmente a pintura.

Para chegar onde chegou, Alberto gastou muito dinheiro comprando cargos e prometendo ao clero que iria pagar todas as despesas quando recebesse o seu segundo pallium[3] arquiespiscopal; além disso, devia grandes somas ao grande banco de Augsburgo e se achava em sérias dificuldades financeiras.

Por causa dessa dificuldade, Alberto persuadiu ao papa que lhe arrendasse as indulgências na maior parte da Alemanha e foi ele quem assalariou o dominicano João Tetzel, anteriormente comissário do papa para ser seu próprio comissário.

Blasfêmias papais

Para atrair a clientela das indulgências, o próprio arcebispo fez a lista dos supostos benefícios que os compradores alcançariam, e, Tetzel usou essa lista como um texto no qual ele podia acrescentar o que quisesse para convencer o populacho a comprar a mercadoria que eles estavam oferecendo, ou seja, títulos de propriedade do céu.

A lista dos supostos benefícios incluía:

         1 – Assegurava ao comprador um completo perdão de todos os pecados, participação na graça de Deus e livramento do purgatório;

         2 -  Concedia ao possuidor de um documento com o selo papal, o direito de escolher o confessor que lhe agradasse, o qual devia absolve-lo sem confissão de crimes e castigos, e lhe permitia ainda mudar qualquer voto penoso em outro mais ameno e agradável;

         3 – Tornava-o participante de todas as obras da igreja universal, de todos os benefícios das orações, romarias e outras obras eclesiásticas efetuadas por todos os membros da igreja em geral;

         4 – Por fim, provia-o de uma plena remissão de pecados as almas que se achavam no purgatório.



João Tetzel porém, ampliou em muito estas instruções. Ele bradava por onde passava:

- “A alma voa do purgatório assim que a moeda tilinta no fundo da caixa.”

- “A cruz vermelha da indulgência tem o poder igual ao da cruz de Cristo.”

- “As cartas papais tem uma eficácia tal que absolveriam mesmo o homem que tivesse violado a mãe de Deus.”

As blasfêmias de João Tetzel nem se comparavam às blasfêmias ditas pelo papa Leão X, ao declarar que alguns pecados não poderiam ser perdoados, mesmo pelas indulgências. Eram eles:


         1 – Conspiração contra a pessoa do papa;

         2 – Assassinato dos bispos e de outros prelados superiores;

         3 – Falsificação de cartas apostólicas;

         4 – Transporte de armas e outros objetos proibidos para países pagãos;

         5 – As sentenças e censuras de importar dos países pagãos, “pedra-hume” da apostólica Tolfa, contrariamente às proibições apostólicas.

A explicação dessa quinta proibição era: “Toda pessoa que importasse pedra-hume na cristandade era culpada de pecado imperdoável.” A explicação disso era a seguinte: Um certo homem chamado Giovani di Castro tinha descoberto nas montanhas de Tolfa[4] domínio do papa, não longe da Civitá Vechia (cidade velha), uma mina de pedra-huma e mina de riqueza para a santa sé.

Di Castro certificou-se de sua descoberta calcinando a pedra. Depois apresentou-se ao papa e disse:


Vou anunciar-vos uma vitória sobre o Turco. Ele tira anualmente dos cristãos 300.000 peças de ouro que lhe são pagas pela pedra-hume com que tingimos a lã; pois não temos senão um pouco perto de Isckia... Eu achei sete colinas tão abundantes em pedra-hume que poderiam abastecer sete mundos. Se quiserdes mandar trabalhadores a fazer fornos para calcinar a pedra, podereis fornecer pedra-hume a toda a Europa e o ganho que com esse artigo obtinha o Turco virá para a vossa mão.

A santa sé apressou-se em explorar seus tesouros recentemente achados, e, com o fim de assegurar a totalidade do proveito para si, declarou um pecado importar qualquer quantidade de pedra-hume na Europa.

A moeda obtida com a venda das indulgências de modo algum devia interferir com as rendas papais provenientes de suas minas de pedra-hume, e dessa forma, a importação de pedra-hume foi declarada um pecado imperdoável por qualquer indulgência.


[1] INDULGÊNCIAS: Venda de títulos de propriedade do céu. Quem comprasse as indulgências teria todos os seus pecados perdoados, fossem eles passado, presentes ou futuros e poderiam ainda ser de entes queridos jáfalecidos. Um dito de João Tetzel era: “Quando a moeda tilintar no fundo do baú, mas uma alma sairá do purgatório rumo ao paraíso.”
[2] OSWALD MYCONIUS: Nasceu em Lucerna, Suíça. Seu nome de família era Geisshüsler, e seu pai era um moleiro. O nome Myconius disse ter sido dado a ele por Erasmus de Roterdã; faz alusão à expressão proverbial Myconian “careca”. Da escola em Lucerna ele foi para a Universidade de Basel para estudar clássicos. A partir de 1514 ele obteve postos de ensino em Basileia, onde se casou, e fez o conhecimento de Erasmus e de Hans Holbein, o pintor. Em 1516 ele foi chamado, como mestre-escola, para Zurique, onde (1518) ligou-se ao partido reforma de Zwingli. Isso o levou a ser transferido para Lucerna, e outra vez (1523) reintegrado em Zurique. Entre seus vários tratados, o mais importante é De H Zwinglii vita et obitu (1536), traduzido para o Inglês por Henry Bennet (1561).
[3] PALLIUM ou PÁLIO: Símbolo de autoridade jurisdicional oferecido pelo papa a um príncipe ou soberano.
[4] Montanhas de Tolfa: Próximo a Roma, usado para caminhada de turistas.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

SEMANA DA REFORMA - LUTERO, A REFORMA E OS ROMANISTAS ULTRAMONTANOS



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Rev. João d’Eça, MD




Introdução

Lutero com o seu trabalho em prol do Evangelho de Jesus Cristo, arrancou das garras do papa metade de toda a Europa de sua época e abalou o mundo conhecido de então, com repercussões até os nossos dias. Ele recebeu um salvo conduto do Imperador Carlos V, no qual estava escrito: “ao mui pio e caro doutor Martinho”. Foi Lutero o homem que recebeu a estima e amizade do príncipe Frederico, o sábio, foi amigo de Spalatin, dos sábios e dos cavaleiros da Alemanha e concentraram-se nele todos os olhares da Europa.

Roma queria queimá-lo; mas todo o poder e explendor de Leão X não conseguiu reduzir em cinzas, o “bêbado Saxonico” como ele lhe chamava. Caetano e Aleander, o sábio e astuto, primeiro orador de seu tempo, mandado à Dieta de Worms para representar o poder papal, não conseguiram seus intentos.

Se Lutero fosse na verdade o que os seus inimigos queriam que ele fosse, se na verdade ele tivesse sido um neófito, então o que diríamos do romanismo e do seu papa?


Resumo biográfico de Lutero

Nasceu em Erfurt na Turíngia, em 10 de novembro de 1483. Depois de ter iniciado os estudos em Erfurt, foi para a universidade onde depois de quatro anos recebeu o grau de Mestre em Ciências e Doutor em Filosofia.

Entrou para o convento dos agostinianos, e conforme diz Dollinger, Staupitz o isentou dos serviços prescritos pela ordem. A Universidade de Erfurt, a mais célebre da Alemanha à época, já havia concedido a ele o grau de Mestre em Ciência e doutor em Filosofia em uma festa com grande pompa.

O trabalho de Lutero no convento era o de vigia, abrir e fechar portas, dar cordas no relógio, varrer a igreja e limpar as celas, e quando tinha acabado o serviço cum sacco per civi tatem, com o saco pela cidade. Esse foi tratamento que o jovem doutro recebeu no convento.

Sobrecarregado com tantos trabalhos não lhe sobrava tempo para os seus estudos e os seus superiores no convento não lhe permitiam que ele deixasse o trabalho para estudar. Quando o viam debruçado sobre uma leitura, murmuravam: “não é preciso estudar mas mendigar pão, trigo, ovos, peixes, carne e dinheiro para se tornar útil ao convento.”[1]

O piedoso e sábio Staupitz, somente depois, a pedido de alguns amigos de Lutero, lhe mitigou a aspereza do tratamento, isentando-o de alguns serviços para dar-lhe tempo de estudar. Assim era o jovem Lutero, acusado injustamente pelo romanismo de orgulhoso.


Lutero ordenado sacerdote

O jovem Lutero depois de dois anos de sofrimento e trabalhos duros no convento foi ordenado sacerdote. Quando Lutero convenceu-se do sacrifício único do filho de Deus, quando entendeu o alcance da morte de Jesus Cristo, quando reconheceu o Cristo como a única vitima pelo pecado e como único sacerdote, e, lembrando se das palavras: “accipe potestatem sacrificandi pro vivis ed mortius”[2] proferidas pelo bispo ao lhe entregar o cálix, exclama: “Se a terra não nos engoliu então a ambos, não foi porque não o merecêssemos, mas sim pela grande paciência e longanimidade do Senhor.”

Lutero experimentou tremendas lutas contra o pecado aos quais não eram compreendidas pelos outros frades do convento que viviam somente para comer e ter regalias eclesiásticas, enquanto que o jovem Lutero estava em busca da verdade e da paz completa em sua consciência. Ele procurava viver uma vida de santidade e pensava que alcançaria no claustro, vestindo o hábito dos agostinianos, cria também expiar os seus pecados pelas obras mortas da carne, com as penitencias que a “santa igreja” lhes impunha. E ainda pior para a sua mente atormentada, ele se ocupava em sacrificar a carne com jejuns, macerações e vigílias. Lutero diz:



Eu me atormentei até a morte afim de alcançar para meu coração perturbado e minha consciência agitada, a paz de Deus; mas, rodeado de trevas espantosas não achei paz em parte nenhuma. Velava, jejuava, maltratava meu corpo, nada conseguia com isso. Então prostrado de tristeza, atormentava-me com a multidão de meus pensamentos. Vê! Gritava comigo mesmo, és ainda invejoso, impaciente, colérico!... Então de nada te serviu o teres entrado nesta sagrada ordem.[3]



Seu amigo Filipe Melanchton testemunha: “Seu corpo se consumia, as forças o abandonavam, chegava às vezes a ficar como morto”.[4]

Em outro momento da vida de Lutero no convento há o seguinte testemunho:



Oh, exclamou o frade saxônico. Se a consolação do Evangelho de Cristo não me teria salvado eu não teria tido dois anos de vida. Nunca a igreja de Roma teve um frade mais devoto, Nunca em convento algum se viu uma aplicação mais sincera e mais infatigável para conseguir felicidade eterna.[5]



Em uma carta que escreveu ao duque Jorge da Saxônia, ele diz: “Se jamais houve frade que entrou no céu pela sua dedicação, eu de certo poderia entrar”.


Lutero e a Bíblia

Até que se converteu lendo as Sagradas Escrituras em Rm. 1.17, Lutero sofreu amarguras, lutou contra si próprio, ficou desesperado pelo pecado, assim como o apóstolo Paulo, o rei Davi e todos os crentes que em comunhão com Deus, sustentam as mais terríveis lutas com o adversário das nossas almas. Quem não passa por lutas assim, sendo cristão, não é um verdadeiro cristão.

O crente verdadeiro quando é despertado pela iluminação do Espírito Santo vê a santidade dele e a sua profunda miséria diante de um Deus que exige pureza de coração, de pensamento, de motivo e, posto face a face com esse Deus Santo, não pode senão desesperar de si mesmo, e gritar como fez o apóstolo Paulo: “Miserável homem que sou quem me livrará do corpo dessa morte?”[6]

A resposta é dada pelo apóstolo dos gentios na sequencia: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”.[7] Esse é o meio para aplacar o desespero da lama de Lutero. Foi a crença na remissão do pecado pelo sangue de Jesus Cristo que tranquilizou sua alma e sarou as feridas abertas pelas invencionices do romanismo.

Quando a alma sedenta aspira alguma coisa mais do que a santidade exterior, essa capa com que se encobre a maldade interna, não fica satisfeita até achar a Fonte cristalina, o Rio da vida onde pode saciar a sua sede, onde acha graça e perdão. Esse perdão e essa graça só pode ser encontrado em Jesus Cristo crucificado, “porque debaixo do céu não existe outro nome dado pelo qual importa que sejamos salvos” (Atos 4.12).

A graça e o perdão de Deus só podem ser obtidos mediante a fé (Ef. 2.8). Essa é a verdadeira doutrina paulina, diferente da doutrina romanista que alega a prática de boas obras, igual ao espiritismo kardecista. O apóstolo Paulo diz em Romanos 5.1: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.” Desse modo concluímos que Lutero ensinou o que aprendeu de Paulo, ele estava arraigado na doutrina dos apóstolos, foi fiel a essa doutrina, lutou pela verdade e venceu.

Lutero lutou contra todas as aberrações do romanismo com as suas doutrinas perniciosas como a missa, a confissão, as indulgências e contra todos os dogmas humanos, extraídos não das Sagradas Escrituras, mas de mentes humanas pervertidas. Haverá doutrina mais destruidora do que essas? Erasmo de Roterdã respondendo a Frederico, o sábio, a cerca de Lutero, lhe respondeu: “Lutero cometeu dois grandes crimes: atacou a tiara do papa e a barriga dos frades”.

Conclusão

Lutero foi um homem diferenciado em seu tempo, aprouve a Deus escolhê-lo para tão grande e árdua tarefa. Ele incomodou os ultramontanos (romanistas) e o testemunho que se dá dele é: “Cristão austero, alemão de costumes simples e puros, homem de razão desenvolvida”.[8]

Lutero era em tudo diferente de João Tetzel (o vendedor de indulgências), charlatão de feira que embebedava-se nas tavernas e sendo convencido de adultério em Inspruck, foi salvo de ser lançado ao rio cozido em um saco por Frederico da Saxônia. Que diferença entre esse monge de costumes simples e o jovem cardeal eleitor de Moguncia e Magdeburgo cuja sede de dinheiro para sustentar o luxo de sua coorte oriental era insaciável. Que diferença entre esse homem de fé profunda e o famigerado papa Leão X que tratava o cristianismo de fábula. E os outros papas tipo Bento, os Bórgias, plêiade de criminosos ilustres que foram a vergonha da humanidade.

O escritor Petrarca, ao contemplar tanta miséria descreve o vaticano como um covil de ladrões: “La grota dei ladroni”.



[1] MATESIUS. Selnecceri Orat. De Lutero, p. 5
[2] “Tome o poder de sacrificar para os vivos e os mortos”
[3] MELANCHTON. Vita Luteri.
[4] Op. Cit
[5] Cochloens.
[6] Romanos 7.24
[7] Rm. 7.25
[8] CANTÚ, vol. 13. P. 369

domingo, 25 de outubro de 2015

SEMANA DA REFORMA - A REFORMA E OS SEUS EFEITOS



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Rev. João d’Eça, MD





Introdução


A Reforma Protestante do Séc. XVI, depois do estabelecimento do Cristianismo, é o maior e o mais importante evento ocorrido no mundo. A Reforma foi preparada pela descoberta da imprensa pelo alemão João Guttenberg (1396-1468) e pelo renascimento das letras. Foram esses eventos que ajudaram a estabelecer a Reforma e desembaraçar o Cristianismo de adições comprometedoras.

Ao longo dos séculos anteriores a igreja havia se distanciado de um modo singular da sua primitiva simplicidade e pureza. O partido judaico-cristão, foi combatido com muita força pelo apóstolo Paulo, quando este ainda era Saulo de Tarso. Eles haviam conseguido implantar na sociedade cristã ideias e costumes emprestados exclusivamente do velho Testamento.

As pompas do culto, necessárias a um povo grosseiro e rudimentar que ainda se achava no berço da sua existência política, insinuaram-se na igreja, copiando o sacerdócio israelita e, de imitação em imitação, acabaram por ter a hierarquia dos sacerdotes judaicos, desde o sumo pontífice até o mais humilde dos ministros do templo.



O judaísmo assimilado

Os judeus tinham o sacrifício perpétuo: quiseram também ter esse mesmo sacrifício. Tinham uma lâmpada que nunca se apagava: acenderam uma lâmpada nos santuários cristãos. Tinham altares que se inundavam no sangue das vítimas: fizeram-se também altares sob os quais imola-se uma vítima incruenta. Tinham festas solenes, instituíram-se festas análogas em um novo culto.


Esta imitação dos ritos judaicos explica-se facilmente. Moisés e os profetas foram os antepassados do Salvador, os arautos da sua vinda. Deus havia falado pelos antigos profetas, os seus escritos eram a reverberação das palavras divinas. Perpetuar as cerimônias no culto cristão pareceu-lhes naturalmente ser obediência aos mandamentos de Deus. Eles não distinguiam suficientemente, na antiga aliança, o que era permanente do que era a forma transitória das ideias que essa aliança exprimia. Confundiram os ritos cristãos com os ritos judaicos. Por esta razão é que vemos esse fundo de judaísmo no romanismo.


O paganismo assimilado

A igreja da Idade Média emprestou muitas coisas do paganismo. O paganismo transmitiu muitos dos seus usos e tradições ao romanismo. Muitos desses são costumes que se consideram inocentes, que se desculpam no princípio e que mais tarde passa-se a tolerar. Esses costumes depois de tolerados se perpetuam nas massas as ideais e superstições que elas de bom grado tornariam receber. O fim de tudo isso é que o romanismo ficou impregnado da antiga religião pagã e os seus adeptos nem sequer percebem.

Essa assimilação do paganismo pelo romanismo instalou entre o Deus supremo e o homem, colocando um exercito de semi-deuses, de heróis divinizados. Em lugar das deusas pagãs, tem-se a virgem Maria e os santos; em lugar dos deuses domésticos do paganismo surge a figura dos padroeiros e das padroeiras das famílias, das cidades, dos estados e até mesmo da nação. O romanismo criou uma corte de deuses como os deuses do Olimpo. A ideia de uma revelação permanente teve a sua origem na ideia cristã de uma revelação escrita.


Os profetas do povo Hebreu eram usados pelo Espírito Santo e viviam em comunhão com Deus. Eles foram os que redigiram os oráculos do Eterno e esses oráculos tornaram-se o código religioso de Israel.


Diferentemente o paganismo nunca teve um código religioso, não tinham revelação escrita nem um corpo de sacerdotes ou um clero que servia de intermediário entre os deuses e os homens. Os deuses não falavam aos homens, falavam aos sacerdotes. Para consultar os deuses era necessário o ministério dos sacerdotes. Os sacerdotes eram por assim dizer, o primeiro degrau dessa escada de seres divinos que se terminava em Júpiter. Os seus ensinos eram infalíveis e a sua autoridade incontestável. Desobedecer a esses sacerdotes era o mesmo que revoltar-se contra o culto nacional, contra o “deus” que protegia o país ou a nação. Para os pagãos tudo se reduzia à obediência aos sacerdotes.


Os sacerdotes no paganismo era o representante oficial da religião, a sua viva encarnação. Ninguém podia dispensar o seu ministério em nenhuma cerimônia pública, assim o paganismo não passava de uma religião humana, a glorificação do homem na pessoa do sacerdote, ou ainda, a exaltação do homem na deificação dos imperadores. Não é assim mesmo que é no romanismo e no neo-evangelicalismo atual?



O Romanismo e o culto às imagens


O velho paganismo reviveu na Idade Média através do culto aos santos e da autoridade excessiva do clero católico. A religiosidade pagã foi derrotada e o nome dos seus deuses desapareceram para reaparecer no romanismo com novos nomes de santos católicos e com a ideia de que eles, por conhecerem a fraqueza humana, estariam habilitados para interceder pelos humanos.


Com essa maligna ideia implantada no coração dos homens, os homens passaram a ter medo do Deus Santo, inventaram com isso “deuses” mais maleáveis, menos terríveis, sujeitos às paixões humanas, assim como os deuses do paganismo eram.


A Igreja da Idade Média foi uma espécie de desenvolvimento natural do neo-paganismo. O romanismo misturou o judaísmo, o paganismo e o cristianismo e confundiu a cabeça das pessoas, criando um novo paganismo sincrético. Foi exatamente isso que os Reformadores do sec. XVI combateram veementemente. Os Reformadores lutaram para voltar ao cristianismo primitivo e puro, muitos perderam a vida por isso, enquanto que a massa dos cristãos se acomodava, às cegas, a esse neo-paganismo no qual o Deus Santo desaparecia atrás da nuvem dos seus ministros ou colaboradores, no qual Cristo também conservando a coroa da sua dignidade, parecia ter abdicado sua obra de mediador em benefício e glória de sua mãe.


Por séculos e até o tempo da Reforma, o romanismo viveu essa contradição e como já mostrou a História, isso não podia durar ad infinitum. A igreja romanista separou-se grandemente dos ensinos bíblicos e mais cedo ou mais tarde a “bomba” iria explodir e as consciências cristãs iriam se insurgir. Deus levantou o homem Lutero para que ele fosse o interprete dessas consciências.


Lutero encontra a Bíblia

Lutero formou-se na Escola do apóstolo Paulo e protestou contra o cristianismo judaizante que da Idade Média aumentara enormemente com a inserção dos elementos do paganismo. Lutero protestou não em nome da razão ultrajada, mas sim, em nome da verdade falsificada, protestou em nome de sua consciência que suspirava por uma paz vinda diretamente de Deus.


A Bíblia foi a mola propulsora do seu protesto, ou, mais precisamente, a Bíblia o fez entender que o verdadeiro Deus devia conservar-se no primeiro plano, ser, não uma divindade terrível, mas a divindade clemente e misericordiosa de quem podemos nos aproximar, a quem podemos pedir a sua graça através do único mediador que ela mesma estabeleceu, Jesus Cristo, o Redentor Onipotente. Lutero compreendeu isso e desde esse momento, fez-se uma revolução em seu espírito e por meio dele, em toda a igreja.


Aos olhos de Lutero a Igreja não era mais que a dispensadora de perdão aos miseráveis; era a detentora de santos que intermediavam entre a terra e o céu; que Maria era uma “deusa” que cerca os homens com a sua ternura infinita e que, como uma advogada implora o perdão divino de seu Filho; ele cria que o clero era uma casta privilegiada que abre, a seu bel prazer, as portas do céu.


Depois que Lutero descobriu a Bíblia naquele dia na biblioteca de Wittenberg, ele agora só via Deus ofendido propiciado pelo sacrifício de Cristo no Calvário e do qual o homem pode aproximar-se arrependido e colocar toda a sua confiança no Senhor Jesus Cristo. Dai por diante tudo desapareceu da alma de Lutero e ele encontrou-se com o Deus da graça. Ele proclamou com força os benefícios desse encontro, a certeza do perdão, a certeza da vida eterna, de uma vida  nova que jorra dessa fé, uma alegria imensa que brota dessa reconciliação. As palavras de Matinho Lutero ecoam desde aquele tempo por toda a cristandade.



Resultados práticos da Reforma

         O povo trocou a autoridade do papa pela autoridade de Deus, a intercessão dos santos, pela intercessão do Cristo, a mediação de Maria pela mediação do Salvador, Jesus Cristo, a submissão ao clero pela submissão à palavra dos apóstolos. A igreja se viu livre dos elementos estranhos que a tinham invadido, do judaísmo e do paganismo, que haviam alterado a sua doutrina, que havia extinguido a sua simplicidade e pureza primitiva. O povo apoderou-se da fé cristã antes oculta sob um monte de práticas supersticiosas.


A mão dos Reformadores arrancou as ervas daninhas que envolviam o Evangelho primitivo e que davam a esse Evangelho um ar de paganismo e judaísmo. Os Reformadores não inventaram um novo Evangelho, eles somente proclamaram o antigo Evangelho que o romanismo havia obscurecido. Os Reformadores não inventaram um novo Cristo sem divindade e sem redenção, eles trouxeram à luz a grande figura do Salvador, Jesus Cristo.

Ainda há perigos

         O cristianismo judaizante ainda prossegue na sua obra destrutiva apesar de que o verdadeiro Evangelho o tem ferido mortalmente. O falso evangelho não resistirá à difusão dos santos Evangelhos, das cartas paulinas e das Escrituras como um todo, que tem sido conhecidas e difundidas nos quatro cantos da terra.


Infelizmente ainda há perigos outros que ameaçam o cristianismo, dentre eles, o orgulho humano, em que muitas pessoas acham que podem viver sem a graça de Deus e esnobam o Evangelho. Mal sabem esses que toda dádiva vem de Deus.


Conclusão

         O Cristianismo bíblico venceu o cristianismo judaizante da Idade Média. Nós os cristãos Reformados não devemos nunca abandonar a nossa bandeira, que foi a mesma bandeira da igreja primitiva e que será a mesma bandeira que amanhã se hasteará: O Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SEMANA DA REFORMA - LUTERO, A REFORMA E A ORAÇÃO


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Rev. João d’Eça, MD



Introdução:


Quase todos os crentes aceitam que a oração é fundamental para a saúde da vida cristã. Para se promover uma Reforma, seja na vida pessoal ou na sociedade, o primeiro passo é sempre dobrar os joelhos diante do SENHOR.

O reformador Martinho Lutero (1483-1546) compreendeu essa necessidade desde cedo. Podemos afirmar que ai está o segredo do sucesso da empreitada de Lutero. Ele um homem forte, de vontade firme, cheio de intrepidez, enfrentou todos os perigos numa época em que se posicionar poderia significar a morte certa.

Lutero desde a sua conversão com a descoberta da Bíblia, lançou-se aos braços do Pai Eterno em quem depositou toda a sua confiança. Lutero amava a vida de oração e dependência a Deus.

Iremos nesse artigo tratar do assunto de como Lutero lidava com a vida de oração e destacar as suas impressões acerca da “Oração Dominical” de Jesus Cristo. Num de seus comentários diz ele:



Quando fizeres oração.... faze-o com poucas palavras, porém com muitos pensamentos e afetos saídos do mais profundo de teu interior. Quanto menos falares, melhor rogarás. Poucas palavras e muitos pensamentos constituem o cristão. Muitas palavras e poucos pensamentos constituem o pagão...


Nesse comentário percebemos que se Lutero vivesse hoje em dia, o que ele diria das orações que se fazem hoje nas igrejas? Parecem mais uma sessão de informações a Deus, como se ele não soubesse de nada e o orante precisasse dar a informação ao Todo-Poderoso. Na sociedade contemporânea Lutero seria expulso da maioria das igrejas ao dizer essas palavras, ainda mais num contexto de orações estridentes e gritadas, como se Deus estivesse surdo. O modo de oração de Lutero é como ele expressa:


A oração exterior e do corpo é aquele sussurro dos lábios, aquele palavrório sem fundamento que fere a vista e os ouvidos dos homens; porém a oração em espírito e em verdade, é o desejo íntimo, o movimento, os suspiros, que sabem das profundezas do coração.



Dai pra frente Lutero irá dimensionar os vários tipos de oração feitas por vários tipos de pessoas. Diz ele: “A primeira é a oração dos hipócritas e de todos aqueles que confiam em si mesmos. A segunda é a oração dos filhos de Deus, que vivem no seu temor”.

A oração Dominical

Lutero também comentou sobre a oração dominical de nosso Senhor. Ele começa salientando o nome de Deus que inicia a oração. Diz Lutero:



Entre todos os nomes, não há nenhum que nos disponha melhor para com Deus do que o nome do Pai. Não heveria para nós tanta ventura e consolação em chama-lo Senhor, ou Deus, ou Juíz.... A este nome de Pai as entranhas do Senhor se comovem; porque não há voz mais amorosa e mais terna do que a de um filho a seu pai.

Em seguida Lutero comenta a parte seguinte da oração de nosso Senhor, a que diz que ele “está nos céus”, mencionando como ilustração a situação do filho pródigo. Diz ele:


Aquele que confessa que tem um pai que está nos céus, considera-se por conseguinte como abandonado sobre a terra. Dai vem a sentir em seu coração um desejo tão ardente como o de um filho que vive apartado de seu pai em um país estranho, na miséria e na aflição. É como se dissesse: Ai! Meu pai! Tu estás nos céus, e eu, teu miserável filho, aqui sobre a terra, longe de ti, rodeado de perigos de necessidades e de tristezas.


Continuando Lutero no seu comentário sobre a “Oração Dominical”, ele trata da condição do temperamento humano dizendo:



‘Santificado seja o teu nome’ Aquele que é colérico, ou invejoso, ou maldizente, ou caluniador, desonra o nome de Deus, sob que foi batizado. Fazendo um uso ímpio do vaso que a Deus, sob que foi batizado. Fazendo um uso ímpio do vaso que a Deus é consagrado. Assemelha-se a um sacerdote que se servisse do cálix para dar de beber a uma porca, ou para enchê-lo de esterco...

Analisando a próxima frase da oração dominical “venha o teu reino”, Lutero discorre o seguinte:

Aqueles que acumulam bens, que fazem construir edifícios magníficos que buscam tudo o que o mundo pode dar, e pronunciam com os lábios esta oração, são semelhantes a estes grandes tubos de órgãos que ressoam nas igrejas sem que sintam nem saibam o que fazem...


Lutero ataca o erro das peregrinações com muita veemência. Essas peregrinações eram muito comuns na sua época e muitos diziam ser a vontade de Deus que essas peregrinações fossem feitas. Lutero disse:

“Um vai a Roma, outro a S. Tiago; este faz construir uma capela, aquele funda uma instituição para alcançar o Reino de Deus; porém todos se descuidam do ponto essencial, que é formarem eles mesmos o seu Reino. Por que vais procurar o Reino de Deus além dos mares, quando deves encontra-lo em teu próprio coração?”

Lutero critica as peregrinações que as pessoas desde antes do seu tempo costumavam fazer em busca de uma elevação espiritual. Dentre as peregrinações mais comuns estavam a de Roma e a de São Tiago de Compostela. Na continuação de sua crítica, ele prossegue:


É uma coisa terrível ouvir fazer-se esta petição “seja feita a tua vontade” Onde se vê fazer na igreja esta vontade de Deus?... Um bispo levanta-se contra outro bispo, uma igreja contra outra igreja. Padres, frades e freiras se enfadam, combatem, guerreiam; não se vê senão discórdia em toda parte. E entretanto cada partido exclama que tem uma boa vontade e uma intenção reta; e desta maneira, em honra e glória de Deus fazem todos juntos uma obra do diabo...


Lutero continua a explicar o que ele entende quando se diz as palavras “pão nosso”. Ele vai explicar o que é esse “pão nosso”, como sendo o “pão de Deus”, o Senhor Jesus Cristo. Ele diz:


“O pão nosso de cada dia nos dá hoje?” É porque não rogamos pelo pão comum que os pagãos comem e que Deus dá a todos os homens; mas pelo pão que é nosso em razão de sermos filhos do do Pai Celestial. “E qual é esse pão de Deus? É Jesus Cristo, nosso Senhor: Este é o pão que desce do céu, para que o homem dele coma, e não morra. ‘Eu sou o pão vivo que desceu do céu;.... as palavras que eu vos digo são espírito e vida são (João 6.50-63. Portanto, repare-se bem nisto, todos os sermões e todas as instruções que não nos representam nem nos fazem conhecer a Jesus Cristo, não podem ser o pão quotidiano e o sustento de nossas almas...


Lutero critica a igreja romana, comparando o “pão do céu” com um banquete que alguém preparou, mas não é servido aos convidados que só ficam sentindo o cheiro e nada podem aproveitar. Diz ele:


De que serve tenha sido preparado para nós um tal pão, se não nos dão, e por conseguinte não podemos saboreá-lo?.... É como se houvessem preparado um esplêndido banquete e não aparecesse ninguém para repartir o pão, para levar os pratos, e para dar de beber, de sorte que os convidados devessem alimentar-se com a vista e com o cheiro... É preciso, portanto, pregar a Jesus Cristo só.

Lutero continua, desta feita fazendo o papel de interlocutor imaginário, usando o método muitas vezes usado pelo apóstolo Paulo na carta aos Romanos, ele então pergunta:


Porém perguntas o que se entende por conhecer a Jesus Cristo, e que utilidade se tira disso? Respondo: Aprender a conhecer Jesus Cristo é compreender o que diz o apóstolo: Mas dele sois vós em Jesus Cristo, o qual de Deus nos foi feito sabedoria, e justiça, e santificação e redenção (I Co.1.30). Portanto, compreenderás isto quando reconheceres que toda tua sabedoria é uma loucura desprezível, tua justiça uma iniquidade repreensível, tua santidade uma impureza vergonhosa, tua redenção uma condenação ignominiosa; quando conheceres que diante de Deus e dos homens é verdadeiramente um louco, um pecador, um impuro, um homem condenado, e quando mostrares não somente com palavras mas com tuas obras e do fundo de teu coração, que não resta nenhuma consolação nem salvação senão em Jesus Cristo. Crer não é outra coisa senão comer esse pão do céu.

Era assim que Lutero permanecia fiel à sua resolução de abrir os olhos a um povo cego, a quem os sacerdotes levavam aonde queriam seus escritos, propagados em pouco tempo por toda a Alemanha, produziam ali uma nova luz, e semeavam abundantemente a semente da verdade um uma terra bem preparada.


Conclusão

Quero concluir com uma oração proferida por Lutero:


Querido Pai, dá-nos graça de modo que tenhamos controle sobre a concupiscência da carne. Ajuda-nos a resistir a seu desejo de comer, beber e dormir além do necessário, de ficar à toa, de sermos preguiçosos. Ajuda-nos através do jejum, da moderação no comer, no vestir, no dormir e no trabalhar, através da vigilância e do labor, a sujeitar a carne e a voltarmos às boas obras.

Ajuda-nos a levar todas as nossas inclinações más e lascivas, bem como todos os seus desejos e estímulos até a cruz de Cristo e sacrificá-los, de modo a não dar crédito a nenhum de seus encantamentos nem tampouco segui-los. Ajuda-nos no momento em que virmos uma pessoa, uma criatura ou qualquer outra imagem bela, de modo que isso não se torne uma tentação, mas uma ocasião para demonstrar um amor casto e para louvar-te pelas tuas criaturas. Ao ouvir doces sons e sentirmos coisas que nos agradam os sentidos, ajuda-nos a buscar não a lascívia, mas o teu louvor e honra.

Preserva-nos do pecado da avareza e do desejo pelas riquezas deste mundo. Guarda-nos de modo a não buscarmos a honra e o poder mundanos e nem sequer consentirmos o desejo por eles. Protege-nos, de modo que as mentiras, a aparência e as falsas promessas deste mundo não nos atraiam para seus caminhos.

Guarda-nos para que as fraquezas e adversidades do mundo não nos levem à impaciência, à vingança, à ira ou a quaisquer outros pecados. Ajuda-nos a renunciar às mentiras e à falsidade do mundo, a suas promessas e à sua infidelidade, bem como a todo o seu mal (como já prometemos fazer no batismo), apegando-nos firmemente a esta renúncia e, assim, crescer dia a dia.

Livra-nos das sugestões do diabo, que não venhamos a dar espaço ao orgulho, que não nos tornemos egoístas e que não desprezemos os outros em nome da riqueza, da posição, do poder, do conhecimento, da beleza ou de qualquer outro dom dos céus. Guarda-nos de cair no ódio ou na inveja por qualquer razão. Preserva-nos de modo que não venhamos a ceder ao desespero, a grande tentação de nossa fé, seja agora ou na hora de nossa morte.

Que tenha o Teu amparo, Pai Celestial, todo aquele que se esforça e trabalha contra todas estas grandes e diversas tentações. Fortalece aqueles que ainda esperam; levanta aqueles que caíram e foram derrotados; e a todos nós dá a Tua graça, para que nesta vida incerta e miserável, incessantemente cercada de inúmeros perigos, possamos lutar com constância e com uma fé firme e destemida e, no final, ganhar a coroa que permanece para sempre.”


Sem coragem, sem inteligência, sem dependência de Deus, sem apoio dos companheiros e principalmente sem uma vida consagrada em oração, a Reforma teria muita dificuldade de ser implantada na Alemanha.



Referências Bibliográficas


ALLEN, William E. História dos avivamentos religiosos. Trad. Helcias Câmara. Rio: Casa Publicadora Batista, 1958. pp 16-17.


ALTMAN, Walter, Lutero e Libertação, São Leopoldo (RS): Sinodal & São Paulo: Ática, 1994.


CALVINO, João, As Institutas da Religião Cristã – Livro III, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985.


FERREIRA, Wilson Castro, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas (SP): Luz para o Caminho, 1995.


GONZALES, Justo L. Uma História Ilustrada do Cristianismo- A Era dos Reformadores (vol. 5), São Paulo: Vida Nova,1995


HENDRIX, Scott H. The Controversial Luther, Word & World 3/4 (1983), Luther Seminary, St. Paul, MN, p. 393. Veja, Hillerbrand, Hans. The legacy of Martin Luther, in Hillerbrand, Hans & McKim, Donald K. (eds.) The Cambridge Companion to Luther. Cambridge University Press, 2003.


LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas (vol. 7). São Leopoldo (RS): Sinodal & Porto Alegre (RS): Concordia, 2000. 


LUTERO, Martinho. Como Orar. Editora Monesrgismo. 


Luther’s Works, Pelikan, Vol. XX, pág.: 2230.

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